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Jogadoras expõem problemas do futebol feminino em Rondônia

Primeiro e único representante rondoniense na Série A precisou protestar por condições de trabalho

por Morcegada

12 de junho de 2023. A data da última rodada da primeira fase do Campeonato Brasileiro Feminino Série A registrou um feito histórico: pela primeira vez, um time de Rondônia disputava na elite do futebol nacional. Mas os holofotes viraram para outra direção na tarde daquela segunda-feira. As jogadoras do Real Ariquemes se recusaram a entrar em campo.

Em forma de protesto, a decisão das jogadoras garantiu a vitória do Santos, adversário direto na partida, por W.O. O Real Ariquemes já estava desclassificado da competição, antes daquele momento. Na primeira fase, somou apenas 9 pontos com três vitórias e doze derrotas. O time concluiu o campeonato na penúltima posição da tabela de classificação.

O protesto se referia a salários atrasados. Três meses de pagamento estavam em aberto, segundo apurações. Outras reclamações giraram em torno dos bastidores, como demissões sem o recebimento dos direitos. O clube terminou o campeonato rebaixado para a Série A2.

REALIDADE NUA E CRUA

Antes do episódio, a meia-atacante Flaviana Santiago contava sobre a felicidade de jogar na elite do futebol, mas ressaltava a desigualdade da realidade do futebol de outros estados em relação ao de Rondônia. “A questão maior é que a gente não é tão patrocinado como outros times, então a gente está galgando agora para evoluir futuramente e deixar um legado para as pessoas que estão vindo”, revelou a jogadora que esteve presente no acesso para a Série A no ano de 2022.

Ao citar a rotina de treinos, Flaviana voltou a falar da necessidade de ter patrocínios. “A preparação a gente ainda tem muito que melhorar. Os patrocínios precisam ajudar a gente mais para a gente poder elevar. Porque o futebol do Norte é bom, mas a gente aqui não é tão visto lá fora. Se os daqui começarem a apoiar, a gente vai começar a ser visto muito melhor”, disse.

Em tom de desabafo, falou o quanto ter a torcida presente e pagando ingresso é gratificante.

Todo apoio que está vindo é bem visto pela gente e bem-vindo. A gente chama a população para ajudar mais, as empresas para poder patrocinar o futebol feminino em si. Porque tem muita gente que fala ‘vou patrocinar’, dá isso e aquilo, mas no masculino é diferenciado. Por que não da mesma forma? A gente busca isso: melhoria para o futebol feminino”, enfatizou.

Rosinha, jogadora e supervisora no Porto Velho Esporte Clube, cita as dificuldades da categoria, mas exalta as profissionais da área. “Posso falar com propriedade, durante todo esse tempo em que participei de estaduais, as meninas são muito dedicadas, responsáveis e determinadas. Tiveram momentos em que a falta de recurso não era empecilho para treinar e ainda digo que o único recurso que as movia é o amor pelo futebol”, lembrou.

Além de estar no dia a dia do clube como funcionária, ela é uma torcedora-símbolo. “Penso que a categoria feminina necessita ser reconhecida e valorizada como uma categoria profissional, desde a estrutura, suporte até o processo do fim de contratação”, explica.

APOIO INCONDICIONAL

Fernanda Jamilly, de 19 anos, sempre foi apaixonada por futebol. Mas só em 2020 soube da existência de clubes rondonienses. A moradora de Porto Velho se encantou pelos campeonatos e se fez presente nas arquibancadas. “O pessoal sempre olha meio espantado, principalmente por ir sozinha, sem uma presença masculina”, falou. Do apoio incondicional para o time que escolheu como seu, a torcida fica para que o futebol feminino alcance patamares maiores. Sobre o caso do Real Ariquemes, Fernanda avalia a situação por uma perspectiva mais ampla.

Me chocou, mas não me surpreendeu. As meninas estavam literalmente na elite do futebol brasileiro e não estavam recebendo salário. Futebol não é hobby, é trabalho. Acredito que o futebol em Rondônia tem as suas dificuldades, mas o feminino tem muito mais. As meninas mal têm investimento e estrutura”, desabafou.

Além dessas questões, a torcedora destaca mais uma problemática: o machismo. “Acho que tem todo o contexto histórico do machismo, obviamente que acaba mascarando com frases do tipo ‘mulher não sabe jogar’ ou ‘não gosto, porque é lento’ e acaba influenciando na forma que a população vê o esporte em si”, analisou.

Outra torcedora da capital, que prefere não se identificar, presenciou no estádio Aluízio Ferreira xingamentos da torcida contra uma bandeirinha. A profissional atuava em um jogo do campeonato masculino de 2023, segundo a torcedora.

“Teve um lance polêmico na partida que a bandeirinha não marcou e foi o suficiente para parte da torcida xingar de maneira forte. Óbvio que no futebol têm muitos xingamentos, mas os xingamentos, naquele momento, eram carregados de machismo. Vagabunda para baixo. Poucas mulheres atuam no futebol se comparado com homens, aí quando tem é assim”, relatou.

Quem ama o futebol rondoniense, assim como Fernanda Jamily, a esperança de dias melhores não morre. “Espero mais investimento, que as meninas consigam viver do seu trabalho e que cada dia os olhos voltem para elas. Lugar de mulher é onde ela quiser, seja no campo ou nas arquibancadas”, completou.

O que move o futebol são sonhos. Rosinha fala sobre eles. “Se estou ainda no futebol é por conta dessas meninas que necessitam participar de campeonatos para lutar pelo seu sonho de ser atleta profissional. Temos referências como nossa rainha do norte, Nenê”, revela. A jogadora também cobra melhorias.

A Federação, sendo a entidade que representa o futebol, deveria buscar e desenvolver junto ao poder público projetos de incentivo ao esporte. Dessa forma, fortalecer a base e todas as categorias. Eu acredito que o futebol feminino de Rondônia luta em busca do seu espaço. No entanto, falta investimento e estrutura”.

O MORCEGADA entrou em contato com a Federação de Futebol do Estado de Rondônia (FFER), mas até a última atualização desta reportagem não obteve retorno quanto ao cenário do futebol feminino no estado.

COMPARAÇÃO COM O FUTEBOL MASCULINO

Na temporada de 2023, oito clubes participaram do Campeonato Rondoniense Masculino, enquanto seis disputaram pelo Rondoniense Feminino. Outros quatro clubes vão competir no Campeonato Estadual Masculino pela Série B, totalizando doze clubes em atividade pela categoria.

A desigualdade não parou por aí. A temporada masculina durou quase três meses, mais especificamente 85 dias. Já o campeonato feminino não chegou a um mês, durando apenas 22 dias. Ou seja, as mulheres tiveram menos de 75% do tempo em relação aos homens.

Em contrapartida, nenhum borderô (registro financeiro) das partidas femininas foi divulgado oficialmente. É a falta de divulgação do documento é comum, segundo o Vilhenense Esportivo Clube, time mandante do último jogo do campeonato contra o Porto Velho. “A Federação não emite o borderô pelo seguinte [motivo]: os jogos são considerados amadores. O feminino, infelizmente, ainda é tratado como categoria amadora, você não pode fazer recolhimento de ingressos, cobrar ingressos”, lamentou.

Pela rodagem da catraca, o jogo alcançou 382 pessoas dentro do estádio Portal da Amazônia, segundo os responsáveis do clube. Isso quer dizer que, no jogo masculino, o público total teve o número superior em mais de 630% em relação ao jogo feminino.

MARGINALIZAÇÃO E RESISTÊNCIA

Essa diferença do futebol feminino para o masculino citada por pessoas que vivem dentro do contexto futebolístico, seja como profissional ou como torcedor, passa também pela história do esporte no Brasil. Por mais de 40 anos as mulheres brasileiras foram proibidas de jogar futebol. O Decreto-Lei Nº 3.199, de Getúlio Vargas, proibia as mulheres de jogar com o argumento de que o futebol era uma das modalidades “incompatíveis com as condições de sua natureza”.

Antes disso, a historiadora Elis Oliveira fala sobre a presença feminina no esporte. “Desde quando o futebol realmente chega no Brasil, na transição do século XIX para o século XX, a gente tem uma presença marcante da mulher, não só jogando como no lado mais social dos clubes. Isso, inclusive, em Porto Velho, na década de 1920”, lembrou.

A prática do futebol pelas brasileiras também já existia. “Você não tem que proibir, se você não tem quem pratique. Então, as mulheres praticavam, mas já tinha toda uma discussão”, explicou. Com a insistência das mulheres em continuar a modalidade mesmo com a proibição velada, o Conselho Nacional de Desportos (CND), subordinado ao Ministério da Educação na época, decidiu colocar a proibição em lei de forma mais clara. O veto começou em 1941, época em que o Brasil vivia o Estado Novo. Vários jogos femininos foram cancelados pelo CND e, em alguns casos, a força policial foi usada.

A proibição se estendeu até depois da ditadura militar e valia para disputas realizadas em estádios, organizadas profissionalmente ou abertas ao público. Neste caso, jogos de rua ou de várzea eram permitidos, embora não fossem vistos com bons olhos. Mesmo com a proibição efetiva, as mulheres não se afastaram da modalidade, segundo Elis Oliveira.

A proibição vai ser sempre marcada por resistência e por um processo de marginalização do futebol feminino, que ainda hoje enfrenta muitos percalços para conquistar seu espaço de direito dentro da prática esportiva”, ressaltou.

As autoridades diziam que o futebol é violento e poderia prejudicar a missão das mulheres: ser mães. Além disso, diziam que os corpos femininos eram delicados e com a prática poderiam ficar masculinizados. Elas não consideravam também os xingamentos em campo um ambiente saudável para as mulheres, pois poderia prejudicar a capacidade de ser boa mãe e esposa.

Morcegada

Site jornalístico supervisionado pelo professor e jornalista Allysson Viana Martins, vinculado ao Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Rondônia (UNIR)

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